O diário da nossa separação


Dia 0 
Estava a acontecer. Estava mesmo a acontecer. Outra vez. Mas não parecia real. Era tudo tão irreal. Tão inacabado. E a completa impossibilidade de o olhar nos olhos. Ou de dizer fosse o que fosse. Falar seria sinónimo de lágrimas e ainda não era tempo delas. Não agora. Não à frente dele. Nunca à frente dele. Ele que me deixou sem, no entanto, me querer deixar. E eu que fiquei tão cheia de nada, de vazio, de clichês. Entro na casa que era a nossa, deixo as luzes apagadas, sento-me no escuro, assombrada pelas memórias, pela mágoa, por tudo o que ficou por viver. Todo o meu corpo grita que isto está longe de estar acabado.

Dia 1
Afinal aconteceu. Afinal foi real. Lembro-me e fico sem ar, a dor vem em ondas e amachuca-me. Quero vê-lo. Preciso de o ver, mas dói olhá-lo sabendo que já não é meu. Preciso de lhe pedir uma coisa. Pego no telemóvel. Hesito. Pouso o telemóvel. Ando nesta dança durante horas. Envio a mensagem e o meu coração dispara. Sinto-me uma adolescente. Sou ridícula. Diz-me que já não tem o que preciso, que na véspera se desfez de tudo o que era meu. Nosso. Que foi o primeiro passo de uma vida que já não me inclui, mas da qual farei sempre parte. Que enquanto as memórias viverem nele, nunca estará sem mim. Faço um esforço supremo para não chorar, mas choro na mesma. O olhar perdido. Agarra-me e beija-me pela última vez e eu vou para casa em pedaços.

Dia 2
Acordo animada por um plano. Por momentos o mundo volta a fazer sentido, mas depressa me chegam à memória as últimas palavras que me dirigiu. Que não lhe diga mais nada, nem uma só palavra mais, acabaram as mensagens, acabaram os telefonemas, acabou, nada temos a dizer um ao outro. Apetece-me ignorar, desrespeitar a sua vontade, ser terrível e aparecer-lhe completamente nua, mas em vez disso passo o dia escondida na cama. Dilacerada. Pouso o telemóvel. De tanto a ler já sei de cor a nossa última conversa. Será doença? Será vício? Largar a droga foi uma brincadeira de crianças comparado com isto.

Dia 3
Dormente, apática, sem ar. Os meus olhos escorrem vazio. Estou a aprender a respirar sem ele. Estou a aprender a ser sem ele. O meu eu sem ele é tão mais pobre.

Dia 4
Uma vida inteira reduzida a nada, foram tantos anos a ser em conjunto e agora é só pó e dor e esquecimento. Tento lembrar-me daquilo que era antes dele, faço um esforço muito grande, recuo no tempo até à adolescente desajeitada que nunca ninguém tinha beijado. Penso em como devo ser uma vergonha e uma desilusão aos olhos das marias capazes deste mundo e penso também num sítio para onde gostava de as mandar. Que atire a primeira pedra quem nunca teve de enterrar um amor. Sei que algures entre os estilhaços estou eu, inteira. Mas por agora restam apenas bocados dispersos.

Dia 5
Saudades de o olhar nos olhos. De sentir que ele me olha. Que me vê. Nunca ninguém me viu como ele me via. A casa transpira abandono. Os legos, a harmónica que o avô lhe ofereceu, a coleção infindável de banda desenhada, o caderno que trazia sempre atrás, os discos antigos que ouvíamos noite dentro, tudo desapareceu com ele. Sinto falta de o ver quando abro os olhos ao acordar. De saber de cor cada gesto dele, o lápis de carvão a dançar-lhe na boca, os dedos distraídos no cabelo, a forma como se debruça para o telemóvel, o jeito de puxar as calças antes de se sentar, o vinco que lhe nasce entre as sobrancelhas quando vai dizer alguma coisa importante. Sinto falta das palavras dele, daquela intensidade tão sua. De quando me agarrava sem medos ou pudores, a toda hora, em qualquer lado. Das conversas intermináveis pela madrugada que teimava em amanhecer. Sinto falta da forma como ele me queria. E a vida vai continuando, sem piedade.   

Dia 9 
Estou a reagir. Dizem-me para o fazer e eu obedeço. Reajo. Não sei muito bem o que isto quer dizer, mas faço-o de qualquer forma. Adotei um cão. Ainda estamos a conhecer-nos mas tenho a certeza de que vamos ser os melhores amigos. Comprei um sofá. Sempre quis ter um sofá branco, mas ele não gostava da ausência de cor. Agora que dele só resta ausência, sou eu que decido a cor. Sou eu que decido tudo, na verdade. Encomendei piza e, pela primeira vez, pude dar uma gorjeta. Tirei os pincéis da gaveta e voltei a pintar. Estou a reagir. Afinal, resume-se tudo a isso.

Dia 13
Vou pela primeira vez a um ginásio. Descubro que correr pode ser libertador. Quando um halter me aterra no dedo com a suavidade de um tiro de um canhão, descubro também que a dor física consegue anular toda e qualquer outra. Sento-me no chão com o dedo na boca e penso que é só mais um pedaço de mim que vai ficar negro.

Dia 15
Aqueles momento de semiconsciência, entre o sono e a vigília, em que já não estou a dormir mas ainda não estou bem acordada e o cérebro demora um pedacinho a lembrar-se de que ele não está aqui. São breves instantes apenas até a realidade se instalar e me atingir. A noite chega e o telemóvel transborda de bateria porque não há ninguém a ligar-me para saber como me correm os dias. Disse-me uma vez que era meu como nunca tinha sido de ninguém e eu tenho cada vez mais a certeza de que ele não faz a menor ideia do que significa pertencer a alguém.

Dia 20
E de repente ali estava ele. Do outro lado da estrada, a rir e a gesticular, ele inteiro, ele feliz, todo ele, acompanhado por um homem e duas mulheres que não me lembro de conhecer. De repente ali estava ele. E eu, desalinhada, o coração a bater-me com força no peito, a fazer doer. E o tempo parou, tal e qual como ele sempre quis, eu que apenas queria andar com ele para trás ou para a frente, não sei bem, qualquer coisa que pudesse preencher este vazio. Ali estava ele e de repente já não estava, ainda eu a tentar lembrar-me de como se respira e já ele a disparar um cumprimento desprendido e a desaparecer com indiferença na rua apinhada, como se nos tivéssemos visto na véspera, como se eu não fosse nada, como se nós nunca tivéssemos sido nada, eu tão insignificante, eu muito pequenina, eu simplesmente invisível. Tão cru e insensível como terminar uma relação por mensagem. E de repente aqui estou eu, uma vez mais tão cheia de nada, de vazio, de clichês.

Dia 21
Já não sei há quanto tempo estou frente a frente com o meu reflexo, a tentar convencê-lo de que esta foi mesmo a última vez que o espelho o devolveu assim, deformado. Depois lembro-me de que tenho de reagir, pego na tesoura das unhas e começo a cortar cabelo ao acaso, primeiro a medo, depois presa de uma raiva surda corto sem parar, madeixas loiras a desmaiarem no lavatório, a cobrirem o chão, corto às cegas, corto tudo o que há para cortar e quando finalmente consigo parar sou reconfortada pela certeza de que já nada resta, nem um fio de cabelo, da menininha submissa que em tempos foi dele.

Dia 30
Abri o frigorífico e comi tudo o que lá estava dentro, incluindo a margarina.

Dia 32
Lembro-me da última vez que o vi e sinto a náusea subir-me pelo corpo, a bílis presa na garganta, a raiva e a angústia despejadas em golfadas de vómito. O que aconteceu ao amor? Para onde foi todo aquele amor? Como é que em meia dúzia de dias ele conseguiu transformá-lo em indiferença? E eu que ainda o sinto nas entranhas, a doer-me em sítios que nem sabia que tinha, debaixo da pele, em todo o lado. Saio com o cão uma e outra vez porque não consigo lembrar-me se já o levei à rua. Acendo cigarros uns atrás dos outros porque já não me iludo com a promessa de que vou deixar de fumar. Já deixei de me iludir com muita coisa e estou cansada de promessas que não consigo cumprir.     

Dia 35
Pego no telefone. Ligo-lhe. Não atende. Atiro o telefone para longe. Choro. Ando às voltas pela casa que, de repente, me parece claustrofóbica. Enterro as mãos na cara. Acendo um cigarro. Olho para o calendário, conto os dias. Entro em pânico. Ligo-lhe. Vou com o cão à rua. Começa a chover. Escorre-me pela cara e ensopa-me o cabelo. O cão enche as patas de lama. Volto para casa. Volto a chorar. Sento-me. Não consigo estar sentada. Nao consigo estar de pé. Não consigo estar em parte alguma. As paredes brancas e mudas. O telefone mudo. O mundo que não pára de girar e com ele a minha cabeça. Fogem-me as palavras. Mas há vida a despontar, há vida em mim. E ele sem me atender. Saio disparada, vou direta à sua porta. O olhar dele, incrédulo. O meu, cheio de dor e de sombras. Tenho em mim um pedaço de ti, digo-lhe. E antes que ele possa dizer alguma coisa disparo. Estou grávida.

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