Vou-me embora amanhã



- Acho que finalmente consegui perceber. Tenho toda esta ideia de que vais salvar-me. De mim mesma, da vida comum, da banalidade de todos os dias.
- Da vidinha simples que me anda a consumir e onde me deixo morrer aos poucos, mas de onde não tenho coragem de sair?
- Nós somos tudo menos pessoas simples. 

Estavam sentados muito juntos, refugiados no conforto que sempre chega com a madrugada. Ele dizia-lhe muitas vezes que a madrugada trazia também a melhor versão dele mesmo.

- Lado ao lado, mas ao mesmo tempo tão longe de nós. Sempre na esperança de que saibas o que fazer com esta solidão. Comigo. 
- Contigo sou mais eu do que alguma vez fui. Tu preenches-me.

Fumaram em silêncio por breves minutos. Ela afagou-lhe o rosto largo, o cabelo escuro, deteve-se no pescoço, de olhos fechados sentiu-lhe o cheiro, respirou-o.   

- Conseguimos o que poucos conseguem. Perpetuar o início. Contigo tudo tem o sabor da primeira vez. - Vamos buscar o melhor e o pior um do outro. Será egoísmo meu querer preservar-te?

E apoderou-se dela uma grande vontade de chorar. Ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios, beijou-lhe os dedos um por um, procurou-lhe a boca que tanto o desinquietava. Ela levantou-se, abriu outra garrafa de vinho, encheu os copos, preencheu o silêncio. 

- Diz-me que vamos ficar juntos para sempre.
- Quem me dera. 

Adiaram o sexo e fizeram amor durante muito tempo, da forma como ela tantas vezes descrevia, com o mistério da primeira e o desespero da últim vez. Abraçaram-se e voltaram a ficar uns minutos calados, a apreciar a simples presença um do outro. Há coisas que não se explicam e o amor é uma delas. 

- Vou-me embora amanhã. 

Ele ficou em choque, mas nada disse. Os olhos escorriam mágoa e fizeram a pergunta que a boca não ousou formular. 

- Já fiquei demasiado tempo. O suficiente para estragar tudo. Se ficar vou acabar por estragar-te também e tu já és demasiado danificado, nao precisas da minha ajuda.   
- Porque te faço fazer sentir? Porque te dou mais do que orgasmos? Porque te digo que é amor? 

Foi a vez dela se refugiar no silêncio. Estavam viciados um no outro e partir era tão doloroso como ficar. Ele ouvia-a chorar muitas vezes, a coberto da escuridão, quando o julgava a dormir. Ela sabia que um sentimento como o deles não podia durar, mas ele tinha nascido um otimista. 

- Quero-te. É pedir muito?     
- Queres sempre mais do que aquilo que te posso dar. 
- Sou um eterno insatisfeito. 

Continuava a ficar nervoso na presença dela, tal como na primeira vez, mas ao mesmo tempo era como um regresso a casa, acalmava-o, deixava um calorzinho no peito. Ele era dela e ela era dele e, no entanto, sabiam que nunca poderiam ser um do outro. 

- Não me deixes. Fica. Fica comigo. 

A madrugada despedia-se deles. Ela engoliu a ansiedade e o que restava do vinho, tomou balanço, ganhou coragem, deixou cair ao chão o olhar. 
 
- Vou-me embora amanhã. 

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