O pastor

A planície inteira ali, a perder de vista, tanto quanto os olhos conseguiam abarcar. Uma imensidão dourada salpicada de pontos brancos, lanzudos, pachorrentos na procura de alimento. O pastor tirou a boina e alisou as farripas de cabelo, o suor a escorrer-lhe pela testa. Desdobrou o guardanapo com a merenda, partiu em pedaços o pão que comeu com vagar. As mãos calejadas que pousou no regaço tinham na véspera ajudado a trazer ao mundo um cordeiro. Fechou os olhos, moldou o corpo ao tronco da árvore que o amparava, deixou-se envolver pelo sono. Ali o tempo era aliado e não inimigo e havia dias em que o pastor jurava que conseguia ouvir a erva crescer.    

As nuvens pintadas de cinzento ameaçavam borrasca. Desencarquilhou os ossos, sacudiu o torpor, deitou mão ao velho cajado. Assobiou à cadela, que arrebitou de imediato as orelhas, disse-lhe que estava na hora de regressar. A casa no cimo do monte, as paredes muito brancas, que tanta serenidade lhe devolviam. O silêncio. Três anos se tinham passado desde que a mulher entregara a alma ao Criador. Depois disso cada um tinha encontrado paz à sua maneira, ou pelo menos era assim que ele gostava de pensar.     

Contou as ovelhas, fechou o estábulo, atirou um osso à cadela que o olhava expectante. Tinha acabado de levar ao lume um púcaro com água quando na madeira ecoaram três pancadas secas. O pastor não se lembrava da última vez que lhe tinham batido à porta, nas raras vezes em que aparecia algum vizinho era sempre pelo nome que o chamavam. Começavam agora a cair as primeiras gotas de chuva. Na soleira estava um homem alto e magro, o queixo quadrado semeado de barba, pálpebras gordas debaixo das quais espreitavam uns olhos claros que o fitavam a direito. Sou seu filho, disse o homem ao fim de uns segundos. Sou seu filho. 

Estavam sentados a entreolharem-se em silêncio, duas canecas fumegantes pousadas na velha mesa e todo um oceano de perguntas entre eles. A mulher do pastor nunca conseguira gerar vida. Os bebés morriam-lhe ainda no ventre, uma e outra vez, e com eles o que restava de um casamento moribundo. E agora aparecia-lhe este à porta, caído do céu ou trazido pela chuva, afirmando ser seu filho e era quase como se tivesse recuado no tempo e estivesse a ver o próprio reflexo, o cabelo ralo, as sobrancelhas grossas, a barba escura que principiava a embranquecer. O pastor estremeceu quando o homem principiou a falar. Até a voz era igual.  

A minha mãe morreu na semana passada, começou por dizer, e dentro do peito do pastor algo quebrou. Amparou a dor como pôde, empurrou-a para longe. Em todos aqueles anos não tivera notícias dela e não raras eram as vezes em que à memória lhe vinha a última vez que a vira, vergada pelo peso, pelo cansaço, a arrastar os passos e a gravidez daquele que estava agora à sua frente e dizia ser seu filho.

Ela foi-se embora ainda grávida e nunca mais voltou. O pastor pigarreou para disfarçar a emoção que lhe embargava a voz. A culpa foi minha, continuou. Não fui homem para desmanchar o noivado com a minha mulher, que Deus tem, e a tua mãe acabou falada em toda a aldeia. Os tempos eram outros... Ela foi mais corajosa que eu e abalou assim, com uma mão atrás e outra à frente e contigo na barriga. Eu é que não passo de um cobarde, mas a vida tem-se encarregado de mo lembrar várias vezes. Calou-se, a mágoa e a vergonha espalhadas pelo rosto, em cima da mesa, pela casa toda. Há muito tempo que não dizia tantas palavras seguidas.  

Aconchegou a merenda no guardanapo, deixou a cadela guiar o rebanho pela planície que continuava ali, constante, imensa. Nada tinha mudado mas tudo era agora diferente. Deus não me deixou morrer sem conhecer o meu filho, pensou, e na boca desdentada desenhou-se um sorriso. Abandonou no cajado o peso do corpo, perscrutou atentamente o céu, o nariz comprido espetado no ar a farejar as nuvens que não prometiam chuva. O pastor fechou os olhos. Hoje até conseguia ouvir a erva crescer.     

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