Diana






Está nervosa, percebe-se nos gestos, na maneira como nos chamou a todos à sala, no olhar que evita o nosso. Começa a falar, vai direta ao assunto e de repente sai-lhe da boca, leucemia. Assim, atirada sem aviso, sem preâmbulos, leucemia. Fica a pairar na sala, por cima das nossas cabeças atónitas e mudas. Para aqui estamos, imóveis, incrédulos, pequenos. Com medo de respirar. De existir. O meu filho na barriga a somar murros àquele que acabou de me atingir e uma voz na cabeça que fala de morte. E de repente as palavras deixam de significar o que quer que seja e não há rigorosamente mais nada que possa ser dito.

Olho para a médica e não sei que cara faço, por um momento não encontro o que dizer. Quanto de nós cabe numa palavra? Diz-me que tenho uma leucemia e é como se a voz dela viesse de longe, de muito longe e eu não oiço nada para além do meu próprio medo, o medo que se espalha por todo o corpo como um formigueiro. Mas eu só tinha uma dor de cabeça. Como assim leucemia? Estou a dois meses de ir para a Suécia e dizem-me que daqui já não saio, que não vou a lado nenhum, nem a casa sequer. Tem de haver algum engano. As palavras da médica acertam-me em cheio na cara e eu estou aqui sozinha e quero a minha mãe.

O sol lá fora e a nuvem negra que não nos larga. É verão mas cá dentro chove. Vazio o lugar onde ela se sentava, o olhar escorrega-me para as suas coisas, adormecidas, pela mão dela largadas, os phones, a garrafa de água, para ali estão a repousar, pacientes numa espera que promete ser longa. Abreviamos a distância da única maneira que nos é permitida. Plastificamos alegria no rosto quando o dela surge no visor, forçamos sorrisos porque não podemos deixar que ela nos conheça as lágrimas, tentamos distraí-la com pequenos nadas, inventamos assunto e piadas idiotas que a façam rir. Mas hoje encontramos-lhe o olhar vazio, hoje não há piada alguma, por mais idiota, que lhe arranque um esgar sequer, hoje sentimos que a vida quer escorregar-lhe pelos dedos e ela está demasiado fraca para a amparar. Desligamos a chamada. Não trocamos palavra, é demasiado doloroso. Falar sobre o assunto é torná-lo palpável. Não olhamos uns para os outros.

Estou cansada. Estou tão cansada. E esta agonia que não passa. Já não me resta nada para vomitar. Talvez vomite o estômago e assim isto acabe de uma vez por todas. Se ao menos me dessem uma Cola. Ia saber-me bem, fresquinha. Ou até podia nem estar fresca. Se ao menos. Este cansaço que me devora os ossos. Eu ainda tentei sorrir, juro que tentei, eles estavam a esforçar-se tanto que achei que era o mínimo que podia fazer, mas a minha vontade não foi suficiente e o meu corpo traiu-me. O meu corpo não tem feito outra coisa a não ser trair-me. Doem-me os cabelos que já não tenho. E esta solidão que queima mais do que todos os venenos que me injetam nas veias, cada centímetro de pele picado e repicado até à exaustão. Não me restam lágrimas. Estou tão cansada. 

A nuvem está mais negra que nunca, ameaça tempestade. O telemóvel transformou-se num inimigo, vai gemendo num sem fim de mensagens que tenho medo de ler. Tenho medo sempre que toca, tenho medo de manhã quando acordo e à noite quando me deito. Pouso as mãos na barriga, é simplesmente absurda a ideia de ela poder não vir a conhecer o meu filho. Como é que me falam assim de morte quando há tanta vida a crescer em mim? Choro às escondidas e peço a Deus que não a deixe morrer, peço tanto e tantas vezes, chego até a ameaçá-lo, não te atrevas, mas é que não te atrevas mesmo a deixá-la morrer.   

o meu corpo. já não é meu este corpo. vai livre e sem rumo, deambula por aí. o corpo que era meu. já não sei o que é real e o que é sonho. que saudades do meu Ruquinha. o meu Ruca não gosta dos outros cães, tenho de lhes dizer para não o deixarem andar à solta. e dizer que as piquis vão mandar-me o nosso Chewbacca da nossa ilha mais bonita. a ver se o deixam cá entrar. hei-de dizer-lhes quando o corpo voltar a ser meu. não devolvi ainda a consola. tenho de devolver a consola. o corpo que arde ao som da Madonna. catano, que concerto que ela deu. se calhar tenho de acordar antes que seja tarde demais e o tempo se esgote. e se o tempo chegar ao fim? achamos sempre que temos tanto tempo. e eu com a mala por fazer. o casaco polar que comprei para o frio da Suécia. os meus suequinhos. tenho sede. o corpo ferve. a voz da minha mãe. estou a ouvir a voz da minha mãe. está a chorar. porque está ela a chorar? quero levantar um braço para lhe tocar, pedir-lhe que não chore, ensaio o gesto, vejo-me mesmo a fazê-lo, mas o corpo não me pertence, não, este corpo já não é meu. 

Respiramos. Devagarinho, pequenos sopros. O ar sossega-nos os pulmões aflitos. A vida, para além de um lugar estranho, apresenta-se, mais que nunca, frágil. A lembrar-nos, uma e outra vez, deste nada que somos. Não morremos nunca por completo enquanto existirmos na memória de alguém. Quem disse isto? Pouco importa. Ela adiou a morte para depois e está viva. Liberto a angústia que me tem acompanhado, digo ao medo que estou cansada de o carregar. O sol ensaia um aceno tímido.   

Abro um olho. Depois o outro. Tenho os dois olhos abertos. Pestanejo uma, duas e ainda uma terceira vez. Bem-vinda. Bem-vinda de volta à vida, Diana.

Somos alívio. Somos empenho e união porque sabemos que juntos somos mais fortes. Somos incansáveis. Somos crença e esperança. Somos uma corrente de força e energia e medula e amor. Somos marlene. Somos tudo e somos nada. Somos um por todos e todos por ela. 

E era a morte que me falava ao ouvido, a morte que esteve sempre a rondar-me, deitada a meu lado nesta cama pálida, a querer compromisso, a sussurrar-me sedutora, com promessas de uma ida sem retorno. A morte que me quis por companheira, que se chegou mesmo a afeiçoar a mim. Mas é vida que me corre nas veias, há vida neste sangue outrora poluído, nesta pele que parece que foi esticada por cima dos ossos, há vida lá fora e há vida em mim. Agarrei-me por dentro do corpo, trepei por ele acima, voltei a senti-lo como meu. E aqui estou. Estou aqui. Estou viva. 

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