A gorda


Atravessou o portão da escola a fingir uma indiferença que estava longe de sentir. Fez-se de cega, surda e muda. Afinal de contas, não era novidade. Nas últimas semanas tinham-lhe posto tantas alcunhas que já perdera a conta. Nomes carinhosos como pote de banhas, baleia azul, popota, bola de sebo ou, nos dias bons, era simplesmente a gorda. Pregavam-lhe rasteiras nos intervalos, atiravam-lhe comida no refeitório, enviavam bilhetes anónimos a ridicularizá-la nas aulas. Agora, saltitavam em seu redor enquanto saíam da escola e competiam entre si a ver quem arranjava o melhor insulto. Há umas semanas, ainda se dava ao trabalho de os tentar enxotar, de responder na mesma moeda, de se valer do corpanzil para os ameaçar. Agora, só queria ser deixada em paz. 

Entrou em casa encharcada, da chuva que chegara repentina, sem se fazer anunciar. Sujou o chão do corredor, a lama dos sapatos a aconchegar-se na água que lhe pingava do corpo e dos cabelos e foi recebida com um bofetão em cheio na cara.
- Não vês a merda que estás a fazer? Além de gorda, és cega? 
Ardia-lhe a face agredida e a alma amachucada. Engoliu as lágrimas, foi para o quarto e comeu todas as bolachas que tinha escondido debaixo da cama. 

O corpo crescia e, com ele, a vergonha. Para trás ficara a escola primária, mas esta estava longe de ser melhor. Não, simplesmente não tinha vindo ao mundo para ter uma vida fácil ou feliz. Agora os insultos não eram cuspidos na cara, mas segredados nas costas e despejados nos olhares carregados de repugnância. Certa vez caiu, à entrada do pavilhão. Alguém gritou tremor de terra e toda a gente riu muito, mas não houve ninguém, absolutamente ninguém que a fosse ajudar a levantar, que lhe perguntasse sequer se estava bem, se lhe doía mais o joelho ou a dignidade. Nesse dia, chegou a casa e comeu tudo o que encontrou no frigorífico. 

A verdadeira tortura acontecias nas aulas de Educação Física. Queria poder ficar a um canto, ser invisível, desistir simplesmente. Corria cinco segundos e arfava, não sabia jogar futebol, era demasiado baixa para basquete, estava sempre a levar com bolas de vólei na cara, fazer o pino era impensável e, na única vez que experimentou fazer uma cambalhota, caiu para o lado e magoou-se. E os olhares, sempre os olhares. De escárnio, de pena. De nojo. A professora repreendeu-a por não usar nas aulas a t-shirt e os calções com o nome da escola. Não soube como dizer-lhe que não tinha encontrado nada que lhe servisse, mas atrás dela apressaram-se logo a sussurrar que não faziam tamanho para elefantes. 

Tinha 19 anos quando foi à primeira entrevista de emprego. Arrumou-se como pôde na cadeira minúscula que lhe apresentaram e engoliu os nervos que a dominavam. Estava a concorrer para uma vaga de rececionista numa clínica e o entrevistador era uma pessoa amável. Ofereceu-lhe café, uma garrafa de água, um olhar empático. A conversa fluiu com naturalidade, ela tinha o perfil indicado, certamente que voltariam a entrar em contacto. Saiu de lá quase feliz. Já tinha um pé na rua quando voltou para trás, para recuperar o casaco de que se tinha esquecido. Na clínica ecoavam gargalhadas.
 - Imaginam o que seria, os pacientes entrarem aqui e darem com aquele bisonte na receção? Aposto que até as compressas e o álcool etílico ela ia comer. 

A conversa começou nas redes sociais. Primeiro a medo, hesitante, uma palavra aqui, outra ali, palavras soltas que se foram multiplicando e que rapidamente se transformaram em grandes colóquios pela noite dentro. Gostavam ambos de cinema, de gatos, de tardes de chuva, do cheiro a pão acabado de cozer. O que ele não sabia e tardava em descobrir era o tamanho de roupa que ela vestia. O corpo, que nunca fora franzino, agora transbordava. E ela escondia-o como podia, atrás de um ecrã, em conversas atrás de conversas das quais nunca saía uma foto, um vídeo, um encontro. 

Até que um dia, depois de muitos meses de paciência e persuasão, ele acabou por convencê-la. Um café, pediu. Só um café, uma horinha que seja. Por favor. Peso mais de 100 quilos, respondeu-lhe. Também não contava pegar-te ao colo já no primeiro encontro, ao menos espera pelo casamento, mas tudo bem, sem problema! Ela riu. E assim cedeu, e assim marcaram encontro, e assim a felicidade voltou a apoderar-se dela, bem como a crença naquilo que há de bom nas pessoas. Vestiu o seu melhor vestido preto, passou eyeliner nos olhos, experimentou um perfume novo. Chegou mais cedo, pediu uma água com gás e esperou, ansiosa, desviando o olhar dos bolos que a seduziam atrás do balcão. Aposto que não vem, pensou, mas à hora marcada ele ali estava, de casaco de ganga e sem troça no olhar. Conversaram a tarde toda. Sobre filmes, sobre livros, sobre a vida. A vida que, finalmente, começava a sorrir-lhe.  

Entrou em casa a cantar. Ao cair da noite enviou-lhe uma mensagem. Mas a resposta demorou a chegar e quando chegou, ela desejou apenas morrer. Que nojo, acreditaste mesmo que eu era capaz de ter alguma coisa com uma gorda asquerosa como tu? Preferia foder um tijolo. 

Não se lembrava da última vez que tinha posto os pés na rua. Passava os dias sentada à janela, a ver a vida a passar, e a comer. Comia para não lembrar, comia para esquecer, comia a ver se assim comia também a dor. Lembrou-se das alcunhas da escola. Pote de banhas, baleia azul, popota, bola de sebo ou, nos dias bons, simplesmente a gorda. Era isso que ela era. Não passava de uma triste gorda. Não sabia ser mais nada, tinha vindo ao mundo apenas para experienciar sofrimento, humilhação, insultos. Fechou os olhos. De repente até as nuvens lhe pareciam farófias.     

Comentários

  1. Ser gordo, hoje em dia, já não é uma fatalidade felizmente!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário