Impostor



As ruas desertas, pintadas de neve, tinham-se vestido para o Natal. Faltava menos de uma semana, mas este ano não tencionava ir a casa. Alegara excesso de trabalho mas a verdade é que estava cansado de fingir que gostava do Natal e da família que só via uma vez por ano. Não que não estivesse cansado também da vida que lhe fugia, cansado de não saber o que fazer consigo mesmo. Estava cansado de fingir a cada dia e a toda a hora. 

Agarrou na guitarra, dedilhou uns acordes, tentou alinhavar a música que compusera na véspera. A concentração escapava-lhe, via agora com clareza que aquela discussão tinha sido despropositada e roçara até o exagero, mas estava tão irritado que não tinha sido capaz de a travar. Tão pouco tinha sido capaz de pedir desculpa ou justificar-se quando se sentiu mais calmo. Magoar pessoas tinha-se tornado um hábito na sua vida. Não que se importasse. Já pouca coisa o importava. 

Chegou cedo ao escritório. Tornara-se advogado com o objetivo de um dia poder processar o pai - a derradeira e patética tentativa de chamada de atenção da criança que cresceu rodeada de brinquedos para compensar a ausência de afetos. Mas a criança tinha ficado enterrada no passado, como tantas outras coisas, e ao adulto que agora era não lhe faltavam afetos, a cada noite tinha um diferente no quarto, se assim o desejasse.

Tudo envelhece, menos o olhar. Os cabelos embranquecem ou rareiam, as rugas sulcam o rosto, as mãos deformam-se, o corpo engelha, mas o olhar permanece. Implacável, chamavam-lhe em tribunal, mas o espelho devolvia-lhe o olhar de um impostor.

- Foi bom o fim de semana?
A pergunta apanhou-o desprevenido, a resposta acusou brusquidão.
- Porquê?
- Estava apenas a ser amigável.
Virou costas. Não precisava de amizades, muito menos de condescendência. 

O toque do telefone arrancou-o do torpor. Provavelmente seria a Marlene ou Marisa ou lá como se chamava a dona das cuecas tigradas que repousavam esquecidas na sua cama. O visor, no entanto, exibia o nome do irmão.  
- Não vens passar o Natal a casa?
- Não.
Curto, direto, seco. Não. Não queria mais discussões. A última vez que se zangara com o irmão tinham estado dois anos sem trocar palavra. Era exímio no que tocava a guardar rancores. Como lhe guardava ainda a ela. Ao tempo que não se permitia pensar nela.  

De que cor teria agora o cabelo? Será que ainda bebia chá ao pequeno-almoço? Ainda se arrepiava quando lhe sussurravam ao ouvido? Será que era feliz? Ainda o traria agarrado à pele ou não passavam já de uma velha história roída pelo tempo?

Acordou com a cabeça pesada, como se estivesse de ressaca. Era véspera de Natal. Que péssima ideia ter-se posto assim a recordá-la, como um idiota. Pegou no telefone, não queria lidar com a solisão, mas a Marlene ou Marisa, que afinal se chamava Mafalda, estava a centenas de quilómetros, em casa da família. Percorreu os contactos um por um e um por um desistiu de todos eles, arremessando o telemóvel para longe. Sentiu-se tentado a entrar no carro e arrancar, conduzir como um louco, talvez ainda conseguisse chegar a casa dos pais a horas de jantar. Sabia que não o faria, por uma vez estava a ser honesto consigo próprio.  

Afastou as cortinas, encostou a testa ao vidro frio da janela. A neve, que entretanto começara novamente a cair, trouxera consigo o silêncio. Abriu uma garrafa de vinho e brindou em surdina. Feliz Natal, pensou. Depois, pegou no telemóvel e ligou-lhe. 

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