O olhar escorregou para os contornos do corpo nu, refletido no vidro da janela do quarto. Já há muito tempo que não se detinha no espelho e, sem saber como, ecoaram-lhe na mente as palavras dele. Afinal de contas não estava mal para a idade, pensou, apesar dos estragos deixados pelo correr dos anos. Sabia exatamente o que ele lhe diria se a pudesse ver agora. Fazia tempo também que não pensava nele. Mas hoje, talvez por ser o seu aniversário, permitiu-se recordar. Faria 58 anos se estivesse vivo.
Vestiu-se devagar, colocando intenção em cada gesto, as lembranças a brotar aos tropeções. O momento em que se conheceram, as palavras trocadas, os olhares que nada escondiam, as promessas que só os apaixonados sabem fazer.
Encheu a chaleira de água, espevitou o fogo na lareira. Tinham-se conhecido numa festa de passagem de ano, depois de terem literalmente tropeçado um no outro. O blazer dele encharcado em champanhe, ela perdida de riso, a desfazer-se em desculpas. Seguiram em sentidos opostos e não mais pensaram um no outro até se voltarem a cruzar, já a noite ia avançada. Ele disse qualquer coisa com graça, ela soltou a primeira de muitas gargalhadas. Conversaram o resto da noite e só se separaram já o sol tinha despontado.
O calor do lume a entrar-lhe pelos olhos, a enrubescer a face. O cão soltou um bocejo. Não combinaram novo encontro, não trocaram qualquer contacto. Mas o acaso encarregou-se de os voltar a juntar. E assim como os juntou, também os separou, uma e outra vez.
Desligou a televisão, afundou-se no sofá e passou pelas brasas. Ele simplesmente desaparecia. Por vezes apenas umas semanas, outras um par de meses. Acabava sempre por regressar. Trazia as mais variadas desculpas, diferentes motivos e explicações e, de todas as vezes, ele aceitava-o de volta e recomeçavam como se nada tivesse acontecido.
Anoitecera entretanto. Ficou ali parada, a apreciar a escuridão. Contigo tudo é na medida certa, costumava ele dizer. Que sorte a minha em poder conhecer-te melhor do que o resto do mundo, afirmava. Quando estamos juntos todos os pequenos nadas são perfeitos, garantia.
Encostou a testa ao vidro frio da janela, polvilhado de pequenas gotas de chuva. Estenderam a toalha aos quadrados, pousaram a cesta do piquenique, ela deu-lhe o livro que escolhera para ele. Trazia um vestido creme, o cabelo solto ao vento e um olhar enamorado que pedia promessas. Estavam tão apaixonados quanto duas pessoas podem estar e nem a chuvada que lhes desabou em cima os conseguiu arrefecer.
- Promete que nunca mais me vais deixar.
- Prometo.
Uma semana e meia depois voltou a desaparecer.
Mas, desta vez, o tempo passou e dele nem sinal. Ela procurou, chorou, perguntou, pediu, suplicou. De nada serviu, ele tinha-se evaporado no ar. E ela à espera, sempre à espera dele. Esperou semanas, meses e anos. Com o tempo, aprendeu a viver a pergunta em vez de estar sempre à procura da resposta.
A resposta acabou por chegar na forma de uma carta. Foi assim que soube que ele era casado e pai de três filhos. Sentiu-se esmagada. Nada mais havia que pudesse ser dito. Leu e releu até saber de cor as palavras dele. A vida vai continuar sem que eu nunca te esqueça. Isto foi real e repetia todos os segundos que menti para viver uma das maiores verdades da minha vida.
Respirou fundo, coberta de mágoa. Das brasas que nunca tinham chegado a incêndio pouco mais restava agora que cinzas.
Acabou de jantar e afagou distraidamente o cão. Nunca quis casar ou ter filhos. Em segredo, acalentava a esperança de que a vida os voltaria a reunir. Mas a vida tinha outros planos.
Depois da carta, não precisou de esperar muito para ter novamente notícias dele. Nas últimas páginas do jornal, nada mais que uma pequena nota de rodapé encimada por uma fotografia desfocada e que em nada lhe fazia jus. Enigmático na morte, tanto quanto havia sido em vida. Encerrava-se assim, e desta vez em definitivo, a história de ambos. A dor que a trespassou foi tão forte que, desde esse dia, não mais voltou a falar.
Soprou a vela, arrumou-se entre os lençóis, assombrada por fantasmas e memórias. Da garganta elevou-se um sopro, mas apenas silêncio lhe fugiu por entre os lábios. Fechou os olhos com força e já só o via a ele, ele a sorrir-lhe, ele debruçado para a beijar, ele a dizer-lhe como era perfeita, ele por todo o lado, tão nítido, tão real que bastava estender a mão para o poder tocar. Foi então que as palavras nasceram, uma após a outra, baixinho, para que só ele as pudesse escutar. Parabéns, meu bem. Parabéns.
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